Qualidade do Transporte Público [Parte 2]

Passei um tempo focado na fase final da minha dissertação, mas encontrei um tempo para voltar com a série de postagens sobre qualidade do transporte público. A intenção desta segunda parte é discutir algumas características do serviço de transporte público que afetam a qualidade. Entender estas características é essencial para desmistificar noções equivocadas sobre o serviço que não raras vezes encontram-se enraizadas no senso comum. Vamos lá…

Antes de qualquer coisa, é importante entendermos uma diferença básica: qualidade em serviços possui características diferentes da qualidade em produtos. A diferença fundamental é que, diferentemente do produto, serviço é algo intangível (“você não pega no serviço”, diria uma saudosa professora que tive no ensino fundamental). Serviço é ação. E transporte é serviço. Obviamente que este serviço opera por meio de objetos tangíveis (produtos, como os ônibus), mas o que está sendo consumido pelo passageiro não é o ônibus, mas, na verdade, o serviço que é prestado por meio dele: o transporte.

Como serviço, o transporte público possui características que fazem com que a qualidade se comporte de forma diferente. Ele não pode, por exemplo, ser estocado, como ocorre com o produto. Como o processo de produção e consumo do serviço são simultâneos (ao mesmo tempo em que a empresa produz o serviço de transporte, os usuários o consomem), cada viagem é única. Pois é, você pode guardar aquele pedaço de lasanha que sobrou do almoço para, com sorte, encontrá-lo na geladeira na hora do jantar, mas, se você perder o ônibus, perdeu uma viagem em potencial única… rsrsrs. Na prática, isto significa que os assentos vazios de uma viagem feita por uma determinada linha em horário de entrepico não podem ser realocados para atender a sobredemanda de outra viagem da mesma linha em horário de pico, por exemplo. A oferta é indivisível. Se há muitas viagens sendo feitas com poucos passageiros isto é, do ponto de vista da eficiência do serviço, ruim. E ineficiência acaba resultando em tarifas mais altas. Por outro lado, ônibus muito lotados também são ruins do ponto de vista da qualidade; fazem com que cada vez mais pessoas deixem de utilizar o serviço, diminuindo a arrecadação tarifária a aumentando o custo por passageiro transportado. O X da questão é encontrar o equilíbrio entre oferta e demanda.

Só que aí surge outro problema: no transporte público costumam existir flutuações de demanda tanto espaciais como temporais. É notório que a demanda em horários como no começo da manhã, no horário de almoço e na transição tarde/noite (horários conhecidos como “picos”) é maior. Além disso, em “dias de semana” a demanda é maior do que nos fins de semana e feriados. Só que isso também pode variar espacialmente. Em João Pessoa, por exemplo, shows na praia gratuitos em fins de semana geram uma demanda bem maior para as linhas que atendem à praia. Quando estas oscilações, que podem ser comuns e sazonais, não são bem conhecidas e previamente identificadas, o resultado pode ser ineficiência ou lotação excessiva, além de outros problemas de qualidade, como confiabilidade.

Outra característica importante do transporte público que tem rebatimento na qualidade está ligada ao fato de que, no momento da prestação do serviço, o cliente (passageiro) está fisicamente presente. Por isso, muitos autores falam do cliente como “co-produtor” do serviço. É um sistema aberto, por contar com a participação dos passageiros. Para entender como isto funciona na prática pode-se recorrer a algumas situações que fazem parte do cotidiano da operação: i) na simples ação de “puxar a cordinha” ou apertar o botão que solicita parada do veículo o passageiro está, de certa forma, “co-produzindo” o serviço; ii) o motorista está fazendo manobras bruscas com o veículo em velocidade alta o suficiente para incomodar alguns passageiros, que reclamam, fazendo com que a velocidade diminua, o que pode ser entendido como adequação do serviço às expectativas do cliente em tempo real; iii) alguns usuários costumam ouvir música no coletivo sem fazer uso do fone de ouvido, o que, sabe-se, incomoda alguns passageiros (além de ser proibido por lei em alguns estados e municípios), gerando insatisfação e, por consequência, afetando a qualidade.

O serviço de transporte público é, em geral, operado em mercados regulamentados, e é importante que saibamos disto quando da cobrança pela qualidade. No Brasil, a grande maioria dos sistemas é operada por meio do regime de concessões. A concessão de serviço público, segundo a Lei de Concessões, é a “delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado”. É importante ressaltar que a titularidade do serviço é sempre da Administração Pública, pois ela é intransferível para particulares. O que é concedida ou permitida é a execução do serviço. Ou seja, neste regime, nenhuma empresa é “dona da linha”, como é comum parecer em situações de “monopólio”. A mesma lei ainda afirma que “toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários”, definindo serviço adequado como aquele “que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”. Está na lei: se não satisfaz estas condições, o serviço não é adequado e, portanto, há descumprimento da lei.

Outra característica do transporte público que afeta a sua qualidade se baseia no ambiente onde a prestação do serviço é realizada: no caso do modo ônibus, as ruas, avenidas, etc.. Uma vez operando nestes ambientes, que não podem ser controlados pelo sistema, ele acaba sendo vulnerável à ocorrência de eventos externos. Congestionamentos, alagamentos e deslizamentos são alguns fenômenos que podem impactar na operação do serviço, gerando distorções nos horários, como atrasos, o que repercute negativamente na qualidade.

Estas são algumas das principais características. Vou deixar abaixo sugestões de leituras que me ajudaram na construção do texto, para quem deseja conhecer mais sobre o tema. Na próxima parte serão discutidos os atributos da qualidade do transporte público. Até lá.

BRASIL. Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos. Brasília, 1995.
FONTES LIMA, Orlando Jr. Qualidade em serviços de transportes: conceituação e procedimento para diagnóstico. Escola Politécnica da Universidade de São Paulo – Departamento de Engenharia de Transportes: São Paulo, 1995.
LAS CASAS, Alexandre Luzzi. Qualidade total em serviços: conceitos, exercícios, casos práticos. 3. Ed. São Paulo: Atlas, 1999.
CARPINETTI, Luiz C.R. Gestão da qualidade ISSO 9001: 2008: princípios e requisitos. 4. Ed. – São Paulo: Atlas, 2011.
CARPINETTI, Luiz C. R.. Gestão da qualidade: conceitos e técnicas. – 2. Ed. – São Paulo: Atlas, 2012.
PALADINI, Edson Pacheco. Gestão da Qualidade: teoria e prática. – 2. Ed. – São Paulo: Atlas, 2011.
FREITAS, Paulo Vitor Nascimento de; SILVEIRA, José Augusto Ribeiro da; CASTRO, Alexandre Augusto Bezerra da Cunha. Qualidade em serviços de transporte público urbano: uma contribuição teórica. Revista Nacional de Gerenciamento de Cidades, [S.l.], v. 3, n. 15, set. 2015. ISSN 2318-8472. Disponível em: <http://www.amigosdanatureza.org.br/publicacoes/index.php/gerenciamento_de_cidades/article/view/1034>.

Autor: Paulo Vitor

João Pessoa-PB

Uma consideração sobre “Qualidade do Transporte Público [Parte 2]”

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: