Organizar o trânsito nas cidades é um desafio e tanto, sobretudo nos médios e grandes centros urbanos. Interesses diversos e muitas vezes conflitantes devem ser analisados e ponderados pelo órgão competente, que deve fazer intervenções visando sempre um sistema viário com fluidez e, principalmente, democrático e seguro. Em Ordenamento do trânsito eu mostrei alguns deles, como aquele entre pedestre – que quer fazer travessias com segurança – e motorista – que quer se deslocar com fluidez -, ou aquele entre proprietários de estabelecimentos, motoristas e passageiros de ônibus, quanto à localização dos pontos de ônibus e áreas para estacionamento na via e para operações de carga e descarga.
De outro lado, você já deve ter percebido que parece existir uma certa hierarquia entre as vias da sua cidade. Existem aquelas vias que muitos de nós acostumamo-nos a chamar de “principais”, que geralmente é asfaltada, tem um fluxo maior de veículos e possui uma certa diversidade de bens e serviços, enquanto outras têm um uso mais residencial, com um fluxo menor de veículos, normalmente de paralelepípedo ou de terra e que dão acesso às vias tidas como principais. Essa diferença não é por acaso e constitui um campo de atuação muito importante em Engenharia de Tráfego: o princípio da hierarquização funcional das vias. Esse princípio ajuda os órgãos de trânsito a definir aquilo que é permitido e o que é proibido no espaço viário, visando diminuir o impacto potencial dos conflitos sobre os quais falamos acima.
Bem, mas o negócio não é tão simples como diferenciar vias “principais” de “não principais”. Não existe apenas uma classificação possível para distinguir as vias quanto à sua função dentro do sistema viário. A classificação viária básica reconhece apenas três classes de via: arteriais, coletoras e locais. Enquanto as vias arteriais suportam os grandes deslocamentos, as coletoras fazem a ligação entre as áreas de tráfego local e as vias de tráfego de passagem e as locais destinam-se a acomodar acesso e egresso às edificações, restringindo o fluxo de passagem. A classificação mais usual admite ainda um quarto tipo, a via expressa, que, assim como a arterial, normalmente é chamada de estrutural. Observem a classificação abaixo:
Para entendermos melhor essa funções, podemos pensar na seguinte relação, no que diz respeito às facilidades de acesso e de percurso:
Em função dessa hierarquia funcional, tem-se as seguintes características típicas das interseções:
Vias locais | Vias coletoras | Vias arteriais | Vias expressas | |
Vias locais | Interseções sem controle de tráfego | |||
Vias coletoras | Interseções com sinalização de prioridade | Interseções semaforizadas (todos os movimentos permitidos) | ||
Vias arteriais | Não deve ocorrer | Interseções semaforizadas (alguns movimentos proibidos) | Interseções semaforizadas (alguns movimentos proibidos) | |
Vias expressas | Não deve ocorrer | Não deve ocorrer | Cruzamentos em desnível (ou conexão por ramais de acesso) | Cruzamentos em desnível; Seções de entrelaçamento |
Fonte: Pietrantonio (s.d.)
No modelo abaixo, que decorre de uma simplificação da realidade para fins didáticos, podemos visualizar como esses quatro tipos de vias se conformam fisicamente e como cada um exerce um papel diferente num percurso hipotético. Observem: ao mesmo tempo em que as vias coletoras recebem o tráfego que vem das arteriais e distribui para as locais, também coleta o das locais e distribui para as arteriais; as interseções entre as vias coletoras e arteriais, semaforizadas e com certos movimentos proibidos, suscitando a necessidade de contornar o quarteirão; os cruzamentos entre as expressas e as arteriais, em desnível, garantindo a fluidez necessária para essas vias.
No Brasil, o Código de Trânsito (Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997) traz, no Anexo I, as definições que devem reger as classificações adotadas pelas cidades brasileiras. Propositalmente, a terminologia legal se aproxima muito da técnica. Segundo a lei:
- Via local – aquela caracterizada por interseções em nível não semaforizadas, destinada apenas ao acesso local ou a áreas restritas;
- Via coletora – aquela destinada a coletar e distribuir o trânsito que tenha necessidade de entrar ou sair das vias de trânsito rápido ou arteriais, possibilitando o trânsito dentro das regiões da cidade;
- Via arterial – aquela caracterizada por interseções em nível, geralmente controlada por semáforo, com acessibilidade aos lotes lindeiros e às vias secundárias e locais, possibilitando o trânsito entre as regiões da cidade;
- Via de trânsito rápido – aquela caracterizada por acessos especiais com trânsito livre, sem interseções em nível, sem acessibilidade direta aos lotes lindeiros e sem travessia de pedestres em nível.
Ocorre que em muitos casos a classificação legal pode não ser capaz de contemplar a complexidade da rede viária de uma cidade. Na prática, muitas vezes é interessante distinguir, por exemplo, vias semi-expressas, como um ponto intermediário entre as expressas e as arteriais, ou mesmo combinar a classificação funcional com outros critérios, como o físico: ciclovia, via exclusiva de pedestre, etc. Ou ainda pensar no papel que a via desempenha numa escala urbana ou regional: vias arteriais radiais, vias arteriais perimetrais, vias locais centrais ou de bairro, etc. Não menos importante, a ocupação urbana, que no Brasil é geralmente baseada na especulação imobiliária e sem pensar na eficiência do sistema de mobilidade, é outra variável que deixa essa equação ainda mais complexa. Diante de tudo isso, os órgãos de trânsito acabam tendo a missão de adotar critérios de classificação complementares, como fez São Paulo (vide Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, de 31 de julho de 2014).
É importante, contudo, observar que essa hierarquia diz respeito à classificação viária clássica. Nos projetos de Engenharia de Tráfego não se pode negligenciar os meios não motorizados de transporte. Os princípios mencionados nesse texto são importantes para organizar o sistema viário de uma cidade e, consequentemente, o trânsito, mas eles estão voltados para uma visão macro e motorizada da mobilidade. Não se pode esquecer que os meios de transporte não motorizados devem ser prioridade sobre os motorizados, de acordo com a Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587 de 2012). E é sobre ela que vamos falar em postagem futura. Até lá.
Referências
PIETRANTONIO, Hugo. Organização do Sistema Viário, Notas de Aula – Capítulo 2, Departamento de Engenharia de Transportes – Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, Brasil, 21 p., s/d. Disponível em: [http://sites.poli.usp.br/d/ptr2377/Capítulo2a.pdf]. Acesso em: 05/02/2018.
BRASIL. Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1995. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Brasília, 1995.
Uma consideração sobre “Hierarquia Funcional do Sistema Viário”