No dia 22 de setembro é comemorado o Dia Mundial Sem Carro. A iniciativa ocorre desde 1997 em várias cidades do mundo e tem como objetivo refletir sobre o excessivo do automóvel e em possíveis soluções para o planejamento da mobilidade urbana. Atividades são realizadas para promover a conscientização, como passeios ciclísticos, proibição de circulação de automóveis em algumas ruas, entre outras. Este post é uma resenha crítica sobre a data comemorativa, fazendo uma breve reflexão sobre o dilema da mobilidade urbana contemporânea.
Mais de 20 anos após os primeiros movimentos, será que a “comemoração” tem sido uma ferramenta efetiva na promoção por uma mobilidade urbana mais sustentável? Ou seria apenas uma ferramenta de marketing? Mais além: poderíamos realmente viver sem automóveis nas cidades contemporâneas? Que ações (ou um conjunto delas) seriam efetivas para um planejamento dos transportes mais humanizado e eficiente?
Entre tantos questionamentos e respostas aparentemente simples e diretas, faz-se necessária a reflexão sobre alguns tópicos importantes para entender, de forma geral, o dilema da mobilidade urbana contemporânea.
As cidades brasileiras, atualmente, dependem (e muito) do automóvel. Por melhores que sejam as intenções de promover um “dia sem carro”, é perceptível que a sociedade está inserida em “Rodópolis” (SOUZA, 2007), cidades cujo planejamento e crescimento urbano foram orientados ao automóvel. Falta de investimentos no serviço de transporte público, precariedade das calçadas, ausência de ciclovias, distâncias incompatíveis com modos de transporte não motorizados são alguns dos pontos que convergem para que o carro seja uma escolha óbvia de transporte.
A situação de caos causada pela greve dos caminhoneiros no Brasil, em maio de 2018, e o consequente desabastecimentos nos postos de combustível é um exemplo claro de que a sociedade brasileira ainda não sabe conviver sem o automóvel particular – como também expõe a dependência de combustíveis fósseis como fonte primária de energia. Os recentes e sequentes aumentos nos preços da gasolina contribuem para forçar a população e os gestores a tomarem providências em buscar soluções alternativas para a mobilidade urbana atual.
Frases como “Cidades para Pessoas”, inspirada no livro homônimo do arquiteto e urbanista Jan Gehl (2013), tornaram-se quase clichês quando se trata em pensar em uma cidade mais humanizada e em mobilidade urbana alternativa. A frase não está errada: é necessário sim pensar em soluções que sejam focadas no pedestre e no ciclista – o próprio livro trata muito bem disso, desde a problemática da expansão automobilística no século XX até um repertório teórico que embase a discussão. No entanto, para se ter um planejamento urbano centrado nas pessoas, precisa-se entender melhor a estrutura espacial e organizacional das cidades.
Soluções radicais e drásticas podem não surtir efeitos positivos. Proibir a circulação de automóveis, taxar estacionamentos, criar faixas ou vias exclusivas para ônibus e bicicletas ou criar ruas para pedestres são soluções adotadas no mundo todo, mas é necessário que sejam executadas seguindo um fio condutor – uma política de planejamento que estabeleça metas a curto, médio e longo prazo. A população precisa de tempo para absorver novas ideias, comportamentos e mentalidades. Executar todas estas ideias a curto prazo e de uma vez só poderão causar conflitos que irão atrapalhar a concretização das ideias (o próprio Jan Gehl afirmou isso em uma entrevista).
Para tornar uma rua para pedestres, por exemplo, é preciso que, a curto prazo, seja reduzido o espaço de circulação para automóveis, e seja melhorada a infraestrutura para pedestres e/ou ciclistas. A longo prazo, quando a população já se acostumar a utilizar menos automóvel (e mais caminhar e pedalar) neste local, é possível fecha-la exclusivamente para pedestres. Este padrão de implantação de projetos precisa ser seguida em diversos outros seguimentos no planejamento das cidades.
Além de eficientes, as propostas precisam ser economicamente viáveis. Deve-se atentar que nem todas as prefeituras, mesmo recebendo verbas específicas para soluções em mobilidade, têm condições de custear soluções mais complexas, como a implantação de linhas de metrô. Um ponto importante deve ser levado em consideração: as melhores soluções não são as mais caras, e sim as que melhoram a eficiência da mobilidade urbana. Melhorias nas calçadas e implantação de ciclovias podem ser soluções de baixo custo, e a implantação de faixas exclusivas de ônibus pode otimizar o transporte público, sem a necessidade de um projeto de metrô, por exemplo.
A viabilidade financeira deve se dá também pelo retorno – em forma de economia na manutenção ou na captação de mais recursos e impostos. Soluções de mobilidade urbana não motorizada, como melhoria de calçadas e ciclovias, contribuem na promoção de atividades físicas, que ajudam na melhoria da qualidade de vida e da saúde, reduzindo o potencial de desenvolvimento de doenças – reduzindo, assim, o custo ao poder público para tratar pessoas enfermas. Melhorar a acessibilidade do pedestre pode dinamizar áreas comerciais e aumentar o volume de vendas das lojas – ou seja, uma maior captação de impostos. Estes e outros benefícios já foram comprovados por estudos como o Foot Traffic Ahead. Só a redução em si do uso de automóveis já acarreta na redução da emissão de poluentes, que prejudicam a saúde – e fazem o Estado gastar mais com o tratamento de doenças pulmonares.
As soluções projetuais devem vir acompanhadas de políticas de mobilidade, educação e conscientização sobre transporte e trânsito. Tais medidas são importantes para expor os benefícios da mobilidade urbana ativa (você pode encontrar alguns neste post), e formas de mudar os hábitos diários de mobilidade. Pequenas mudanças de hábito, como compartilhamento de carro, a promoção de caronas para o trabalho e a realização de atividades cotidianas a pé ou de bicicleta, são medidas que podem ser tomadas de imediato ou a curto prazo. Além disso, em um primeiro momento, é preciso dar incentivos para que ocorra a mudança no uso do automóvel, como redução ou gratuidade de tarifas de transporte público, incentivos fiscais ou no salário para quem for de bicicleta ao trabalho (como ocorre na França, por exemplo).
O transporte público, pedestrianismo e o uso da bicicleta devem ser integrados por meio de uma política de transporte intermodal, ou seja, o uso de vários modos de transporte, de forma integrada. Conectar calçadas, ciclovias e linhas de transporte público em um único sistema de mobilidade urbana, de forma que seja possível de deslocar para qualquer ponto da cidade utilizando os vários modos de transporte disponíveis – sem precisar utilizar o automóvel. Cada um dos modos de transporte citados possuem um potencial de cobertura de distâncias diferente (veja neste post a distância potencial de cada um deles), podendo ser usado na escala local (pedestres), setorial (pedestre e bicicleta) e urbana (bicicleta e transporte público), de forma que o automóvel seja utilizado somente em situações específicas e em distâncias maiores, e não para itinerários corriqueiros, como casa-trabalho, casa-escola, casa-lazer.
O conhecimento do comportamento humano precisa ser introduzido de forma obrigatório na formação técnica de profissionais da área dos transportes. Alguns estudos, como os realizados por Gehl (2013; 2018) e a Teoria da Sintaxe Espacial (HILLIER, 2007) expõem como a cidade, os espaços livres e edificados, moldam padrões de comportamento humano. No que diz respeito à mobilidade urbana, o arranjo das ruas (ou seja, sua configuração espacial) é o gerador primário de fluxos e deslocamentos (HILLIER et al., 1993). Tal conhecimento poderia contribuir para a construção de soluções mais voltadas para os reais padrões de deslocamento humano e para o potencial de acessibilidade das cidades, muitas vezes pouco explorado. Quanto mais as soluções de mobilidade se aproximarem do padrão de comportamento humano, mais eficiente poderão ser.
Os pontos aqui apresentados são apenas parte de várias reflexões feitas no meio do planejamento urbano e dos transportes, mas é possível concluir que o Dia mundial Sem Carro precisa ser também um “Dia Mundial da Mobilidade Alternativa”. A exclusão do automóvel no cotidiano das cidades, além de ser impraticável hoje, não é a solução mais eficiente, se não for acompanhada de melhorias e incetivos ao transporte público, ao pedestrianismo e ao uso da bicicleta. É preciso que as políticas e propostas de mobilidade urbana se apropriem sobre o conhecimento do comportamento humano e tracem metas e soluções graduais, de forma que convirjam, a longo prazo, para um pensamento sistêmico, integrado e voltado para a escala humana.
Se você tiver interesse em se aprofundar nos movimentos a favor da redução do uso do automóvel, o grupo Word CarFree Network possui um site (em inglês) que mostra ações voltadas para a redução do uso do automóvel nas cidades, bem como a promoção de campanhas educativas, projetos, conferências e seminários sobre o assunto.
Quer saber mais sobre mobilidade urbana não motorizada e transporte público? Acesse nossos posts sobre o assunto:
Mobilidade Urbana Ativa: 7 Benefícios para as Cidades
Acessibilidade e Mobilidade Urbana: Escalas de Análise
Hierarquia Funcional do Sistema Viário
Qualidade do Transporte Público, Parte 1, Parte 2 e Parte 3
Referências:
GEHL, Jan. Cidades para Pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2013.
Gehl, Jan. A Vida na Cidade: Como Estudar.
HLIIER, Bill. Space Is the Machine: A Configurational Theory of Architeture. London: Space Syntax, 2007.
HILLIER, Bill; PENN, Alan; HANSON, Julienne; GRAJEWSKI, T.; XU, J. Natural movement: or, configuration and attraction in urban pedestrian movement. Environment and Planning B: Planning and Design, v. 20, n. 1, p. 29 -66, 1993.
SOUZA, Marcelo Lopes de. ABC do Desenvolvimento Urbano. 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil 2007.
Nota: O conteúdo desta resenha pauta-se no ponto de vista do autor, não refletindo ser a mesma opinião dos demais colaboradores do blog.