Este post traz uma breve revisão de literatura sobre mapas de figura-fundo, mostrando suas diferentes formas de representação gráfica e análise morfológica.
1. O que é Figura-Fundo?
Figura-fundo é a denominação empregada em representações cartográficas do ambiente urbano e/ou edificado, onde o foco desta representação são os elementos físicos essenciais da forma urbana e arquitetônica. Os elementos são representados em duas cores, em alto contraste. O mais comum é usar preto e branco, mas variações podem ser aplicadas.
Por conta das informações representadas, este tipo de mapa também é conhecido como “cheios e vazios” – os “cheios” sendo os espaços edificados e/ou parcelamentos, e os “vazios” são os espaços de circulação. Outra nomenclatura empregada é “barreiras e permeabilidades” (bastante difundida entre os pesquisadores da Sintaxe do Espaço), sendo as barreiras equivalentes aos cheios e as permeabilidades aos vazios.
Mapas de figura-fundo são considerados umas das ferramentas mais básicas para estudos da forma urbana, por possibilitar, a partir do sistema de barreiras e permeabilidade, diversas leituras e análises sobre a cidade.
2. Origem
O primeiro mapa de figura-fundo que se tem registro é o “La Nuova Topografia di Roma” (também conhecido como Mapa de Nolli), produzido pelo arquiteto e agrimensor italiano Giambattista Nolli, em 1748. De acordo com Del Rio (1990, p.74), o papa Clemente XII solicitou a Nolli um mapa que representasse a cidade de Roma com precisão e detalhes.
No mapa, Nolli utilizou a projeção vertical desenhada como figura fundo, representando as edificações como elementos cheios, preenchidos em cor escura – em algumas edificações, há o detalhamento da planta interna. Os espaços de circulação, a exemplo de ruas, praças e alguns espaços internos de edificações são representados com a cor branca.

Fonte: Wikimedia Commons.
No mesmo período, outros mapas similares forem sendo feitos, tendo como foco as relações de cheios e vazios. Um exemplo é o mapa da cidade de Trujillo, Peru, feito pelo arquiteto italiano Joseph Formento em 1786. Nele, as construções são marcadas em vermelho, mas sem o nível de detalhamento que Nolli utilizou para o mapa de Roma.

Fonte: Wikimedia Commons.
Del Rio (1990, p. 74) ainda frisa sobre a importância do mapa de Nolli para a representação das cidades, por ter se tornado um dos métodos mais populares de análise da forma urbana “por expor claramente diversas das relações entre os elementos conformadores do tecido urbano”. Além disso:
“A importância do mapa de NOLLI pode ser verificada em suas inúmeras citações, como também em interessante exercício projetual intitulado ‘Roma Interrotta’, levado a cabo por um grupo de 12 arquitetos famosos, dentre eles Michael GRAVES, James STIRLING, Aldo ROSSI, Robert VENTURI, Colin ROWE, Paolo PORTOGHESE e os irmãos KRIER. Consistiu em que cada um recebesse uma das 12 pranchas do mapa de NOLLI para naquela área propor a sua utopia e especulações projetuais (GRAVES, 1979)
Del Rio (1990, p.74)
Ao longo do século XX, a figura-fundo se popularizou em estudos morfológicos. As abordagens histórico-geográfica, baseada nos estudos de Conzen (1960) e tipológica projetual, baseada em Muratori (1959) usaram de mapas de cheios e vazios, em diferentes escalas, bem como, em maior ou menor grau, nas demais abordagens morfológicas descritas por Oliveira (2016).

Fonte: Wikimedia Commons, editado por Alexandre Castro (2022).
O legado de Nolli também pode ser visto em obras mais recentes. Estudos de isovistas (BENEDIKT, 1979) usam mapas de cheios e vazios como base para a projeção de campos visuais. O livro “Formas Urbanas: A Dissolução da Quadra”, de Panerai, Castex e Depaule (2013) utiliza diversos tipos de representação de figura-fundo para analisar a evolução das quadras ao longo do tempo. O mesmo ocorre em “Análise Urbana”, de Panerai (2014).
3. Representações do Mapa de Figura-Fundo
Ao longo do tempo, diversas maneiras de representar a dicotomia espaço construído – espaço livre foram desenvolvidas. Tais representações foram resultados da necessidade de representar diferentes informações e a disponibilidade delas. Abaixo, são apresentadas as 3 mais comuns:
3.1 Edificações em preto e espaços de circulação em branco
É a representação mais tradicional, já empregada por Giambattista Nolli, no Século XVIII. As edificações são marcadas em cores escuras – opcionalmente, pode haver a marcação dos parcelamentos (lotes) nas quadras), para um maior grau de detalhamento.

Base de Dados: PMCG. Elaboração: Alexandre Castro (2022).
Há versões em que quadras, calçadas e elementos naturais – a exemplo de áreas verdes e corpos d’água – também são representados, para uma melhor compreensão dos espaços vazios, principalmente na demarcação dos espaços viários. Há situações de quadras vazias, mas que não são espaços passíveis de deslocamentos (terrenos murados), e que, sem a representação das quadras, podem passar a interpretação de ser um espaço livre e passível de circulação.

Base de Dados: PMCG. Elaboração: Alexandre Castro (2022).
Outras alternativas podem ser interessantes, como inverter as cores (edificações em branco e os demais espaços em preto) ou inserir outras paletas e gradientes. Não são as representações mais tradicionais, mas dependendo do formato e design do trabalho que está sendo realizado, pode gerar imagens bonitas e fáceis de leitura.

Base de Dados: OpenStreetMap. Elaboração: Alexandre Castro (2022).
Vale salientar que esse nível de detalhamento da figura-fundo depende do objeto ou tema a ser estudado. Se o objetivo é observar a disposição e geometria do conjunto edilício no espaço urbano, a marcação apenas das edificações pode ser suficiente. Se as informações de sistema viário, calçadas e/ou quadras fizer parte do escopo da pesquisa ou for importante para a leitura da forma urbana, pode-se fazer o uso desses elementos no mapa.
3.1.1 Vantagens:
Detalhes da forma urbana: é a representação onde se obtém a maior quantidade de dados e informações sobre a forma urbana de um determinado lugar, visto o grau de detalhamento das barreiras e espaços edificados. Interfaces público-privadas podem ser mais bem analisadas, ao identificar recuos e distribuição das edificações nos lotes, adensamento da quadra, entre outros.
Extração de dados e informações: quando essa base de dados é georreferenciada e tratada em Sistemas de Informação Geográfica (SIG) – a exemplo do QGIS – diversas informações, métricas e indicadores podem ser modelados, calculados e extraídos, desde o tamanho das edificações e lotes, perímetro, compacidade e densidade, e ainda permitir a visualização das barreiras e permeabilidades.

Base de Dados: OpenStreetMap. Elaboração: Alexandre Castro (2022).
Mapas de isovistas (BENEDIKT, 1979) também podem ser elaborados sobre um mapa de figura-fundo. A depender do software a ser utilizado, o conjunto edilício deve ser delimitado, e os espaços de circulação fechados. No exemplo abaixo, a base foi modelada no QGIS, cujos espaços livres foram delimitados, para que a isovista pudesse ser modelada no DepthmapX.

Base de Dados: OpenStreetMap. Elaboração: Alexandre Castro (2022).
3.1.2 Desvantagens:
Disponibilidade de Dados: a maioria das cidades brasileiras não possuem dados livres, abertos e atualizados sobre edificações e suas inserções no parcelamento. Mesmo bases geográficas voluntárias confiáveis, como o OpenStreetMap, não possuem um conjunto completo de edificações das cidades brasileiras. Casos como São Paulo e Rio de Janeiro possuem lacunas nas bases de edificações, o que dificulta a representação morfológica das cidades como um todo.
Se o estudo é numa escala pequena, como de bairro, ainda é possível modelar manualmente sobre alguma imagem de satélite, por exemplo. Mas se o estudo é na escala da cidade, o tempo de modelagem será considerável e pode inviabilizar o estudo, a depender do tamanho da área urbana.
3.2 Quadras em preto e espaços livres públicos em branco
É entendida como uma simplificação do primeiro modelo de edificações em cores escuras e espaços de circulação em cores claras. Nele, as quadras como um todo, são representadas em cores escuras, independente da presença e tipo de inserção de edificações,

Base de Dados: IBGE (Adaptado). Elaboração: Alexandre Castro (2022).
3.2.1 Vantagens
Facilidade de modelagem: Cheios e vazios baseados em quadras são mais fáceis de serem modelados do que a partir de edificações, visto que há um nível menor de detalhamento – antes, na escala do lote, agora para a escala do quarteirão – o que demanda menos tempo de confecção. Além disso, é mais fácil encontrar bases de dados georreferenciados que se aproximem do quarteirão, como a base de faces de logradouros do IBGE, que podem ser adaptadas para esta finalidade.
Obtenção de dados e métricas relacionadas às quadras/lotes): Assim como no modelo tradicional (edificações em preto e espaços de circulação em branco), esta forma de representação pode ser útil para a extração de dados relacionados às quadras e lotes (quando se usam essas informações como cheios), podendo-se analisar sua geometria, área, perímetro, compacidade, dentre outras métricas.

Base de Dados: PMCG. Elaboração: Alexandre Castro (2022).

Base de Dados: PMCG. Elaboração: Alexandre Castro (2022).
3.2.2 Desvantagens
Disponilidade de dados de quadras e lotes: Apesar de sua modelagem ser mais fácil, nem sempre é fácil encontrar dados de quadras oficiais e, principalmente, de lotes. Assim como no primeiro tipo de figura-fundo, se o estudo é numa escala pequena, como de bairro, ainda é possível modelar manualmente sobre alguma imagem de satélite, por exemplo. Mas se o estudo é na escala da cidade, o tempo de modelagem será considerável e pode inviabilizar o estudo, a depender do tamanho da área urbana.
3.3 Quadras em branco e espaços livres públicos em preto
Esta representação tem sido empregada em estudos mais recentes, cujo destaque/foco do mapa é o sistema de espaços livres públicos. Pode ser lida como um “negativo” das figuras-fundo tradicionais.

Base de Dados: IBGE (Adaptado). Elaboração: Alexandre Castro (2022).
3.3.1 Vantagens:
Facilidade de modelagem: atualmente, é fácil obter dados de espaços livres públicos a partir de bases de dados georreferenciadas, como a base de faces de logradouros do IBGE e imagens de satélite. Uma vez que o foco são os espaços livres públicos, as demais informações sobre edificações e suas inserções nos parcelamentos não são necessárias, apenas a delimitação das quadras;
Serve de base para a elaboração de mapas sintáticos e de campos visuais: mapas axiais e de segmentos, bem como as análises de grafos de visibilidade, são modelados sobre o sistema de espaços livres públicos. Portanto, é possível usar esse mapa de figura-fundo para a criação de mapas sintáticos. Além disso, permite também uma melhor sobreposição de dados, visto que, quando os mapas sintáticos são modelados a partir de imagens de satélite, como as do Google Earth, quando estas são atualizadas, pode haver deslocamentos e incompatibilidades na representação sobreposta de ambas.

Base de Dados: IBGE (Adaptado) e Elaboração Própria. Elaboração: Alexandre Castro (2022).
No caso específico para as Análises de Grafos de Visibilidade, é importante definir os critérios de barreiras e permeabilidades, que podem variar de acordo com o objeto estudado, uma vez que esse mapa é a base para o processamento das medidas de campos visuais. Apesar de não ser uma figura-fundo tradicional, os mapas de campos visuais permitem, para além das medidas sintáticas calculadas, compreender a configuração dos espaços de circulação.

Base de Dados: IBGE (Adaptado) e Elaboração Própria. Elaboração: Alexandre Castro (2022).
Pode-se citar, como exemplo, o artigo “Padrões de visibilidade, permeabilidade e apropriação em espaços públicos abertos: um estudo sintático”, de Saboya et al. (2014), onde os autores propõem descrições alternativas para barreiras e permeabilidades a serem empregados no estudo.
3.3.2 Desvantagens
Limitação de dados a serem extraídos e espacializados: Quando o sistema de espaços livres públicos é o único espaço modelado, há menos possibilidades de obtenção de outros dados e medidas. Porém, isso pode ser remediado, a partir da modelagem das quadras, a exemplo do segundo modelo.
3.4 Outras variações de representação gráfica
Mapas de figura-fundo, além de importante ferramenta para análise da forma urbana, pode ser também uma interessante representação gráfica e artística do espaço urbano, além de uma ferramenta didática para o ensino de morfologia urbana.
Assim, outras variações na representação gráfica podem ser exploradas, para melhorar a qualidade visual do mapa: elementos tridimensionais, uso de contornos ao invés de preenchimentos de polígonos, sombreamento, gradações e combinações de cores são algumas das possibilidades que podem ser testadas. O importante é que o mapa de figura-fundo, no final da confecção, seja de fácil leitura, interpretação e bem diagramado.

Base de Dados: OpenStreetMap. Elaboração: Alexandre Castro (2022).

Base de Dados: OpenStreetMap. Elaboração: Alexandre Castro (2022).
4. Qual Representação Usar?
Não há uma regra ou norma no que diz respeito à representação do mapa de figura-fundo, para além da representação de barreiras e permeabilidades. Alguns tópicos são importantes na tomada de decisão da representação gráfica do mapa:
- O que quero representar e destacar? Área construída/barreiras, logradouros/lotes, quadras, espaços livres públicos/permeabilidades?
- Qual a disponibilidade de dados a serem representados?
- Qual a escala do mapa? Local, setorial, urbana, regional?
- Qual(is) programa(s) vou utilizar para a elaboração do mapa?
- Qual o propósito do mapa? Um produto técnico/ científico ou expressão gráfica?
Referências
BENEDIKT, M. L. To Take Hold of Space: Isovists and Isovist Fields. Environment and Planning B: Planning and Design, v. 6, n. 1, p. 47-65, 1979.
CONZEN, M. R. G. (1960) Alnwick Northumberland: a study in town-plan analysis. London: Institute of British Geographers Publication 27, George Philip, 1960.
DEL RIO, V. Introdução ao Desenho Urbano no Processo de Planejamento. São Paulo: Pini, 1990.
GRAVES, M. (Org.) Roma Interrota. Architectural Design Profile 20, v. 49, n 3-4, 1979.
MURATORI, S. Studi per una operante storia urbana di Venezia I. Palladio, p. 3-4, 1959.
OLIVEIRA, V. Morfologia Urbana: Diferentes Abordagens. Revista de Morfologia Urbana, v. 4, n. 2, p. 65-84, 2016.
PANERAI, P. Análise Urbana. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2014.
PANERAI, P.; CASTEX, J. DEPAULE, J. Formas Urbanas: A Dissolução da Quadra. Porto Alegre: Bookman, 2013.
SABOYA, R. T.; BITTENCOURT, S.; STELZNER, M.; SABBAGH, C.; ELY, V. H. M. B. Padrões de visibilidade, permeabilidade e apropriação em espaços públicos abertos: um estudo sintático. Arquitextos, v. 14, n. 164, 2014.